domingo, 15 de março de 2009

Sobre a "Objectividade"



por Layla Anwar [*]

Alguém me disse outro dia que devia ser mais "objectiva" acerca do Iraque... Ela acrescentou, com a sua mentalidade analítica ocidental, com o seu pensamento montado para "a investigação e a imparcialidade", que a "objectividade" me ajudaria a avaliar melhor a situação...

Ela tentava fazer-me entender melhor a minha situação... vê-la de uma perspectiva diferente, uma perspectiva que se ajustasse primorosamente dentro da sua mentalidade... ou dentro de não importa o que a sua mentalidade pudesse absorver, uma mentalidade empírico-racional...

"Vamos deixar os sentimentos de lado", disse ela... ela era o observador objectivo e imparcial da nossa tragédia... da nossa carnificina... e ela queria entender-me. Entender o que?

As minhas células não precisam entender, elas sabem... os meus olhos não precisam entender, eles vêm, os meus ouvidos não precisam entender, eles ouvem... Entender o que?

Que a cor do sangue é vermelha? Que a história tem de ser apagada e transformada em cinzas e ruínas modernas? O que há aqui para entender?

O que há para entender acerca de barrigas inchadas e olhos inchados a enfraquecer lá longe entre tóxicos radioactivos? O que há para entender acerca de cemitérios em massa que ainda estão a ser escavados quando escrevo... o que há para entender acerca de uma sociedade dilacerada, a viver por trás de altas muralhas e em guetos?

O que há para entender?

O que há para entender acerca do meio milhão de órfãos a viverem nas ruas de Bagdad ou dos 5 milhões de órfãos a pedirem abrigo e comida, ou do milhões de viúvas à espera da morte? O que há aí para entender?

Um coveiro disse "o negócio está baixo, mas ainda é negócio... como de costume". Haviam-lhe perguntado se o seu emprego provocava-lhe depressões... Ele respondeu "não de todo, sinto segurança e paz com a morte..."

Entenda isso, se puder – com a sua mente "objectiva" e "imparcial"....

Você nunca viveu numa tenda, nem teve de implorar por autorizações de residência a serem renovadas... você não esconde a sua pronúncia, nem a sua origem, não precisa fazer de conta que não é daqui, nem dali... Agora, isso é objectivo.

E o som de bombas e as histórias infindáveis de seres ausentes não são tão pouco a sua música diária... e parentes perdidos em prisões fantasmas não fazem parte do seu panorama... e você certamente não esconde fotografias do que costumava ser a sua casa e não pede a um viajante para discretamente tirar fotos dela de modo a que nunca a esqueça... assim pode permanecer com a sua mente "objectiva"...

Quando eles telefonam e perguntam-lhe se "precisa de alguma coisa daqui" você não precisa dizer "envie-me alguma terra num saco de plástico, de modo a que eu possa cheirar outra vez..."

Como pode um nariz ser objectivo e imparcial?

Mas, por favor, permaneça imparcial... de modo a que o Ocidental possa entender.

Porque a sua mente está formatada, uma mente onde tudo está classificado por ordem... por listas alfabéticas como um baralho de cartas, o famoso baralho de cartas. ABCDEFG... 1234567... processa ordens, o que vem primeiro... o que vem depois, as maravilhas da mente investigadora. Lentes microscópicas a dissecarem vidas humanas... para o nobre fim da Objectividade.

Como uma pintura primorosamente estruturada... ordem... faça ordem a partir deste caos se puder...

Faça ordem desta torre em colapso, desta fortaleza em colapso, faça ordem... de modo a que todos nós possamos nos tornar objectivos e entender... entender o que a mente já não pode mais compreender...

Você não precisa ordem, eu preciso ordem... Eu preciso ordem, eles precisam ordem... nós precisamos base ordenadas, porque todos nós estão suspensos aqui por um fio e o abismo profundo está abaixo de nós... nós precisamos ordem, não você.

É por isso que os refrão diário preferido dos iraquianos é "segurança, segurança... não queremos comida, não queremos água, não queremos electricidade, dê-nos apenas segurança..."

E o que os faz tão inseguros? Quem removeu a ordem daqui? Quem é que a estudou objectivamente a fim de rompê-la e destruí-la?

Quem havia de ser senão aquela mesma mente que investiga com objectividade...

E se isto ficasse apenas por aqui...

Não só isso, mas você está desconfiado, descrente e acusado de exagêros...

A mente imparcial não acredita em si... Não quer acreditar em si. Porque a sua linguagem mudou, você fala uma outra linguagem... uma linguagem que ele não entende... uma linguagem que ela criou mas que você não pode dominar...

De modo que você se encontra na posição de precisar provar com "factos" o que esta mente objectiva criou na sua vida, com atestados...

Cabe a você o dever de trazer provas e evidências do caos que eles criaram... da destruição que eles fizeram...

E você se encontra diante de um dilema malicioso, um dilema que você nem mesmo solicitou... um bocado como um prisioneiro inocente amarrado com correntes e sem saber se alguma vez sairá desta masmorra escura... também você, torna-se um prisioneiro deste discurso, desta mente "objectiva"...

Você se encontra encurralado, onde eles o colocaram. Tal como um prisioneiro inocente a tentar recordar factos para contar ao juiz, se ele alguma vez o vir... factos como números, datas e nomes... o prisioneiro faz uma lista na sua cabeça, listas em ordem alfabética e numérica... numa ordem perfeita...

Passeio em torno levando um bloco de notas e um lápis. Preciso apresentar prova, sustentar minhas afirmações, minha realidade. Tenho de anotar nomes e datas, números numa morgue, informação precisa apoiada por "evidência concreta sólida", de modo a poder apaziguar a mente objectiva... Torno-me um prisioneiro do discurso. O seu discurso.

Sinto mesmo isso quando escrevo neste blog...

Poderia ser mais específica? Pode explicar por que? Você precisa apresentar evidência. Será que pode mudar o seu estilo? Você precisa de alguma editoração. Forneça links. Sustente as suas afirmações. Mude a sua linguagem. O fraseado em inglês não está correcto. Será que precisa utilizar estas sentenças rudes? Isto não faz sentido. Isto não é politicamente correcto. Isto é insultuoso. Por que publicar isto agora? Este não é o momento para isso. Falta-lhe objectividade. Você está a generalizar. Isso não aconteceu desse modo. Isto é pura propaganda. Você está a mentir...

Meça as suas palavras Mulher, vire-as, mude as suas cores, dê-lhes novas dimensões, pese-as, objectifique-as tal como eles objectificam você e eles, de modo a que eles possam entender nas suas mentes objectivas... a intenção, extensão e profundidade da sua própria indiferença e destrutividade...

Revire o seu mundo íntimo e o externo,
elimine as tempestades do deserto e os redemoinhos,
represe os rios
pare as correntes
apague os sentimentos com uma borracha, limpe-os,
torne-se o zumbi do PTSD
[1]
apele a eles, de modo a que tenham piedade de si.
isto é o que eles querem ouvir, precisam ouvir...
seu outro lado é o Salvador...
o salvador objectivo
que precisa entender antes de salvar...
antes que ele salve você, de si próprio...

Mas ao mesmo tempo controle-se, controle seus sentimentos e emoções porque a mente objectiva não aceita o que cair fora da sua estrutura... o que não estiver alinhado com os seus pensamentos...

Erga-se acima disto tudo e torne-se o super-homem e super-mulher nietzcheanos... torne-se como Deus, mas não mostre a sua deidade porque a mente objectiva não pode aceitar qualquer coisa que não esteja empiricamente provada...

Assim, não os etiquete, mas etiquete-se a si própria... eles precisam da etiquetas, afinal de contas eles a etiquetaram. Etiquete-se e atribua-se a si próprio também um código de barras. Impressões digitais e escanerização do olho. Faça medidas biométricas e numere-se. Afixe a etiqueta... de modo a que eles possam entender, entender objectivamente.

Deixe de lado seu sofrimento, suas noites sem sono, sua aflição, sua perda, sua confusão, seu isolamento, seus ausentes, deixe de lado o seu coração... e afixe a etiqueta.

Ouça bem e explique calmamente, não fique super excitado, não traga o passado, concentre-se no aqui e agora, no futuro... objectivamente.

Desligue-se... extirpe suas memórias, extirpe seu sofrimento, extirpe-se a si própria e torne-se a Imparcialidade, um exemplo vivo de Brancura.

É isto que você precisa fazer, para ser entendida pela Mente Objectiva.

Alternativamente – você rasga os retratos e fotos objectivas, você desliga a informação e os dados, você escava ainda mais profundamente no seu deserto íntimo, nos seus espinhos, nas suas feridas... deixa-as sangrar outra vez, expô-las ao ar fresco e à luz do sol, expô-las à Vida...

Um renascimento, não aquele de que eles lhe falaram, não as suas dores do parto nem a dor do trabalho, as dores da sua nova ordem mundial, mas suas... a sua nova ordem mundial...

Exponha-as à História e à Vida, de modo a que possa viver outra vez.

Não os deixem cortar a sua língua com a "objectividade".

Vomite, ruja...

Torne-se o guerreiro e o poeta da sua própria Libertação... com Sabedoria, uma Sabedoria antiga, a sua antiga Sabedoria.

12/Março/2009

[1] PTSD: post traumatic stress disorder. Distúrbio que afecta vítimas de violência. Caracteriza-se pelo sentimento de que um evento traumático passado irá repetir-se.

[*] laylaanwar@gmail.com

O original encontra-se em
http://uncensoredarabwomanblues.blogspot.com/2009/03/on-objectivity.html
Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .